Incapaz de vender a alma ao diabo, a Rede Bandeirantes acaba de
revender seu santo horário da noite para o pastor R.R. Soares, o líder
da Igreja Internacional da Graça de Deus. O seu ‘Show da Fé’ de 20
minutos, que começava religiosamente às 21h, agora vai durar uma hora
inteira, a partir das 20h30. Não se sabe ainda quanto custou esse novo e
triplicado milagre, mas pelo contrato antigo o bom pastor já pagava R$ 5
milhões mensais à Band. O vil metal falou mais alto para a TV de
Johnny Saad, que anunciava a devolução do horário nobre da noite a
seriados consagrados, como o
24 horas, para concorrer com as novelas da Globo e as séries do SBT, todas com melhor audiência.
A novidade escangalhou os planos do argentino Diego Guebel, que
assumiu a direção artística da Band em outubro passado com a promessa de
recuperar o espaço nobre e caro da noite para atrações mais mundanas do
que a prosopopeia de Soares. A bíblica derrota de Guebel na Band é
apenas outro indício da onda avassaladora do dinheiro que afoga a TV
brasileira deste Brasil cínico que finge ser laico e imune à força
econômica da religião e seus falsos profetas. Os canais de rádio e TV
são concessões públicas, supostamente alheias aos credos e seitas
religiosas que transformaram estúdios, igrejas, templos e estádios em
púlpitos eletrônicos cada vez mais invasivos e escancarados.
Não existe ninguém no governo ou no Congresso brasileiros com coragem
para frear essa flagrante ilegalidade, sancionada por verbas, dízimos,
patrocínios e uma farta hipocrisia. A irrestrita capitulação aos padres e
pastores que lideram milhões de fiéis (e eleitores) ficou escancarada
na última eleição presidencial, em 2010, quando os dois principais
candidatos com raízes na esquerda — Dilma Rousseff e José Serra —
sucumbiram vergonhosamente à chantagem das correntes mais atrasadas das
igrejas, frequentando missas e cultos com o gestual mal ensaiado de pios
devotos que não sabiam nem metade da missa, nem qualquer salmo dos
evangelhos. Encenaram um constrangedor teatro de conversão medida para
não ofender o eleitor mais ortodoxo. Para não perder votos, Dilma e
Serra caíram na armadilha do falso debate religioso sobre o aborto — um
tema que um e outro, por mera consciência política ou formação
acadêmica, sabem que nos países mais evoluídos não passa de um grave e
secular problema de saúde pública.
A submissão das instâncias do Estado secular ao poder cada vez maior
das igrejas pode ser medida pela intrusão cada vez mais descarada da fé
nos meios eletrônicos do Brasil, que deturpam a concessão pública pelo
proselitismo religioso vetado pela Constituição. A igreja católica
brasileira agrupa hoje mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV,
contra 80 rádios e quase 280 emissoras de TV de oito braços do crescente
ramo evangélico. É um domínio que se fortalece cada vez mais, embora
adaptando seu perfil para fórmulas mais agressivas e despudoradas de
avanço sobre o bolso das populações mais pobres, mais desesperadas,
menos instruídas.
Em agosto de 2011, a Fundação Getúlio Vargas divulgou o Novo Mapa das
Religiões, um denso estudo realizado pelo Centro de Políticas Sociais
da FGV, com base em 200 mil entrevistas formuladas pelo IBGE em 2009 a
partir de sua Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). O trabalho mostrou
que o Brasil deixará de ser a maior nação católica do mundo nos próximos
20 anos, mantida a queda progressiva que sofre a Igreja no país. Ela
representava 83,24% da população em 1991 e caiu para 68,43% em 2009. “As
mudanças que antes ocorriam em 100 anos agora acontecem em 10. Se esta
perda de 1% de católicos por ano continuar, a Igreja católica terá em 20
anos menos da metade da população brasileira”, destacou o coordenador
da pesquisa, Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de
Políticas Sociais da FGV.
A economia é um forte indutor desta transformação, diz Neri. Ele
lembra que as chamadas ‘décadas perdidas’ de 1980 e 1990 foram
demarcadas pela queda do catolicismo em contraste com a ascensão dos
grupos evangélicos, especialmente seus ramos mais belicosos e vorazes —
os neopentecostais. O período de 2003 a 2009, compreendido entre duas
graves crises econômicas, observa uma segunda explosão evangélica,
passando de 17,9% para 20,2%. A primeira explosão, ainda maior, ocorreu
nas últimas seis décadas do Século 20, quando os evangélicos aumentaram
seu rebanho em sete vezes: passaram de 2,6% em 1940 para 15,4% em 2000. A
FGV foi buscar no alemão Max Weber (1864-1920), o pai da moderna
sociologia, o fundamento teórico que explica o avanço arrebatador dos
evangélicos, a partir de sua obra mais conhecida —
A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo,
publicada em 1904-05. Ali, Weber explica o maior desenvolvimento
capitalista nos países protestantes no Século 19 e a maior proporção
desses fiéis entre empresários e trabalhadores mais qualificados. “A
tese de Weber era que o estilo de vida católico jogava para outra vida a
conquista da felicidade. A culpa católica inibiria a acumulação de
capital e a lógica da dívida de trabalho, motores fundamentais do
desenvolvimento capitalista”, escreve Neri.
Weber repetia um ditado da época: “Entre bem comer ou bem dormir, há
que escolher. O protestante quer comer bem, enquanto o católico quer
dormir sossegado”. O pensador alemão constrói seu texto em cima de
máximas do inventor e calvinista americano Benjamin Franklin
(1706-1790), um dos líderes da Independência dos Estados Unidos, que
dizia que “tempo é dinheiro” e “dinheiro gera mais dinheiro”. Era uma
notável conversão justamente aos argumentos opostos que levaram ao
grande cisma do cristianismo, no início do Século 16, quando um atrevido
padre agostiniano alemão, Martinho Lutero, pregou nos portões da igreja
de Wittenberg as suas 95 teses que desafiavam a autoridade do Papa e
quebravam a hegemonia de Roma sobre o mundo cristão. Na época, Lutero
denunciava justamente o que seria o âmago da Reforma Protestante: o
desvio do caminho de fé da igreja primitiva para o atalho da corrupção,
da indulgência, da simonia e da luxúria de papas e cardeais rodeados de
amantes e concubinas, antecessores lascivos dos bispos e padres que
comem criancinhas.
Lutero e sua radical volta às origens, estimulando o protesto aos
desvios éticos de Roma e o retorno à palavra original dos evangelhos,
geraram os dois termos que identificam os segmentos mais prósperos da
dissidência cristã: os protestantes e os evangélicos, onde brilha sua
facção mais agressiva e endinheirada — o pentecostalismo, que hoje
abriga no mundo cerca de 600 milhões de seguidores, pulverizados em 11
mil seitas e subgrupos. Ali viceja sua parcela mais faustosa: a corrente
neopentecostal, a que pertencem o abonado bispo R.R. Soares e seus
parceiros mais ricos, os também bispos Edir Macedo, Silas Malafaia e
Valdemiro Santiago, cada um chefiando sua própria seita, sempre na
condição suprema de ‘apóstolos’. Todos mostram uma devoção especial
pela alma e pelo bolso de seus seguidores, a quem não se acanham de
pedir contribuições financeiras a que, recatadamente, chamam de
‘oferta’.
Para não atormentar ainda mais a vida de sua aflita freguesia, os
quatro chefes religiosos tratam de facilitar ao máximo as ofertas
financeiras. Na tela da TV de seus animados cultos, sempre se oferece o
número das contas bancárias, a bandeira dos cartões de crédito ou o
telefone para informações extras que permitam a oferta, rápida e
facilitada. Nenhum deles fica ruborizado pela insistência do pedido de
ajuda, porque todos são pios devotos da ‘Teologia da Prosperidade’, uma
doutrina pecuniária que faria o velho Lutero engolir cada uma das 95
teses que vomitou contra a cupidez da velha Roma.
A ideia nasceu, evidentemente, no coração do capitalismo, os Estados
Unidos, no início do Século 20. O pai dessa fé sonante é o americano
Essek William Kenyon (1867-1948), um evangelista de origem metodista
nascido em Saratoga, Estado de Nova York. Descobriu o milagre do rádio e
plantou ali a sua “Igreja no Ar”, a ancestral eletrônica dos R.R.Soares
e Malafaias da vida. Espalhou então aos quatro ventos o lema que
explica as benesses divinas da fartura: “O que eu confesso, eu possuo”.
Kenyon passou o bastão da prosperidade para um conterrâneo, Kenneth
Erwin Hagin (1917-2003), um jovem texano com deficiência cardíaca, que
caiu de cama quando adolescente. Garantiu ter ido e voltado ao inferno e
ao céu não uma, nem duas, mas três (três!) vezes. Com este desempenho
singular, até para campeões de esportes radicais, o jovem naturalmente
converteu-se. Dizendo-se ungido para ser mestre e profeta, Hagin
garantia ter tido oito (oito!) visões de Cristo na década de 1950, além
de acumular alguns passeios extracorpóreos. Tudo isso acrescido pela
divina revelação de que os verdadeiros fiéis deviam gozar de uma
excelente saúde financeira e que o caminho da fortuna passava,
inevitavelmente, pela prosperidade de seus profetas aqui na Terra. Foi
sopa no mel, e a teologia da prosperidade conquistou corações e mentes —
e bolsos.
A primeira semente deste ostensivo neopentecostalismo brotou no
Brasil com a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 pelo
bispo Edir Macedo. Três anos depois, o pastor R.R. Soares, casado com
Magdalena, irmã de Macedo, saiu do ninho da Universal para fundar sua
própria igreja, a Internacional da Graça de Deus, que acaba de alugar a
tela do horário nobre da Band graças ao verbo divino e a verba
milionária do pastor. Uma década depois, o bispo Macedo, ainda mais
próspero do que o cunhado, comprou a sua própria rede de TV, a Record,
hoje a segunda maior audiência do país (4,7 pontos) no horário nobre das
noites de dezembro passado, embora ainda distante da Globo (13,8).
Os televangelistas brasileiros aparentemente compõem um paraíso na
terra e no ar rico em mirra, incenso e ouro, muito ouro. Há tempos,
quatro grupos evangélicos rondam o empresário Sílvio Santos, que topa
tudo por dinheiro, na esperança de amealhar o espaço das madrugadas do
SBT por módicos R$ 20 milhões mensais. Em 2009, o próprio Edir Macedo
alvejou sua maior concorrente: ofertou R$ 545 milhões para alugar o
espaço das madrugadas da Rede Globo para a sua Igreja. A Globo piscou,
não respondeu, e o bispo voltou à carga em agosto passado, disposto a
mover céus e terras. Nada feito.
A contabilidade desses pastores, pelo jeito, oscila entre o inferno e
o paraíso. O bispo que oferecia milhões para comprar um naco do maior
concorrente era o mesmo dono da Igreja que fazia um descarado apelo em
seu
blog, em abril passado, para que os fieis juntassem alguns trocados para ajudá-lo a pagar a conta salgada de seu
site.
Coisa miúda, apenas R$ 107.622 mensais, que o pobre bispo diz gastar
com despesas mundanas como hospedagem do servidor, salário dos
funcionários, água, luz e gastos administrativos da manutenção do
site.
“Se o Espírito Santo lhe tocar, nos ajude a carregar essa
responsabilidade”, escreveu o bispo, implorando por uma doação mínima de
R$ 20.
O espírito santo, aparentemente, tocou a Rede Globo. A emissora dos
Marinho odeia o bispo Macedo, mas adora os evangélicos. Na véspera do
Natal de 2011, 18 de dezembro, a maior rede desta vasta nação católica
rasgou o hábito e transmitiu o seu primeiro evento evangélico, gravado
uma semana antes no Aterro do Flamengo, no Rio. O público presente,
apenas 20 mil pessoas, foi uma heresia para as ambições bíblicas da
Globo, mas a fiel audiência na telinha na tarde do domingo seguinte foi
uma bênção divina. Ao longo dos 75 minutos do programa, condensado de
quase oito horas de gravação ao vivo (entre 14h e 21h30),
apresentaram-se nove artistas no ‘Festival Promessas 2011′, sob o
comando do astro global Serginho Groisman. Um dos mais festejados foi o
cantor Regis Danese, 39 anos, que vendeu um milhão de cópias com um
único disco gospel, “Compromisso”, o único a conquistar o primeiro lugar
em rádios e TVs seculares do país e que lhe garantiu a indicação para o
prêmio Grammy Latino em 2009.
Antes desse sucesso, Danese já era consagrado como artista do Só Pra
Contrariar, um grupo de pagode que ainda ostenta o 27º lugar do ranking
brasileiro, com 8 milhões de discos vendidos. Apesar disso, com
problemas no casamento, converteu-se ao protestantismo no início do
século. Salvou o matrimônio com Kelly, sua parceira musical, e engordou
ainda mais o bolso. O álbum “Compromisso”, que conquistou o ‘Disco de
Diamante’ pela venda de 500 mil cópias em apenas quatro meses de 2008,
traz o seu maior sucesso,
Faz um milagre em mim. O jornalista Tom Phillips, do diário britânico
The Guardian,
anotou que, logo após sua triunfal apresentação no festival da Globo,
Danese foi indagado na entrevista coletiva sobre os fundamentos deste
milagre musical: “O senhor escutou a voz de Deus? O que ele disse?”,
perguntavam-lhe. O ex-pagodeiro explicava e, embevecido, o isento
repórter da revista
Nova Jerusalém ressoava a cada resposta: “Amém. Louvado seja o Senhor!”
A genuflexão da Globo não representa uma súbita conversão da emissora
ao credo evangélico da música: “A Globo não é um canal católico, e sim
secular e republicano. Apenas documentamos um festival gospel por sua
crescente importância na vida cultural do Brasil”, esquivou-se Luiz
Gleizer, diretor da TV, ao jornalista britânico que ecoou o festival sob
uma manchete embalada pela típica ironia inglesa: “O gospel começa a
dar o tom no Brasil, a casa da bossa nova”.
Os profetas da Globo não sabem entoar um único salmo, mas como os
apóstolos eletrônicos da concorrência também têm um ouvido afinado pelo
doce tilintar das moedas do templo. Isso não é contado nem no
confessionário, mas os querubins globais sussurram nos corredores da
‘Vênus Platinada’ que os direitos de comercialização e os espaços
publicitários do festival renderam à Globo algo entre R$ 35 milhões a R$
55 milhões, o suficiente para remir muitos pecados, dúvidas e dívidas,
aqui na terra e lá no céu. O grupo é dono da gravadora Som Livre e de um
catálogo religioso onde brilham ídolos como o padre católico Fábio de
Melo, que já vendeu quase 2 milhões de CDs pelo selo global.
O olho cúpido e republicano da Globo está mirando um mercado de música gospel que o
The Guardian
estima em R$ 1,5 bilhão, um paraíso econômico onde se irmanam crentes,
artistas, emissoras laicas, pastores, espertalhões, vigaristas e
políticos de todas as crenças, devotos todos do santo dinheiro que cai
do céu diretamente em seus bolsos. O fluminense Arolde de Oliveira,
deputado federal pelo PSD — aquele diabólico partido nascido da costela
do prefeito Gilberto Kassab e que garante não pertencer nem ao paraíso,
nem ao inferno, nem ao purgatório —, é dono da rádio 93 FM e do Grupo MK
Music, que ele jura ser o maior selo de música gospel do continente.
“Mais de 60 milhões de brasileiros estão direta ou indiretamente ligados
à Igreja Evangélica”, lembra o deputado Oliveira. A Globo, como se vê,
tem a inspiração divina e o ouvido apurado.
O festival Promessas abriu as portas de uma terra prometida para os
profetas globais. No domingo gospel, a audiência da Globo subiu aos
céus, dando-lhe a indulgência de miraculosos 13 pontos no Ibope (cada
ponto representa 58 mil aparelhos ligados), bem mais do que os 7
humildes pontos habituais do horário. O pastor Silas Malafaia, inimigo
da Universal do bispo Macedo, aproveitou e tripudiou no seu
site:
“A Record não acreditou nos evangélicos, a Globo acreditou e arrebentou
na audiência! Enquanto a Record fala mal dos cantores e da igreja, a
Globo abre espaço para o louvor e adoração a Deus”. E arrematou com um
desajeitado elogio que deve ter sobressaltado as almas globais: “Quando
os que deveriam abrir as portas fecham, Deus usa os ímpios para
glorificá-lo”. Iluminada pela santa promessa do Ibope, a ímpia Rede
Globo prepara mais três edições do sucesso gospel para 2012 — duas
versões regionais e uma nacional, evitando cuidadosamente o Rio de
Janeiro, que já padece a praga de um congestionamento evangélico todo
santo ano.
Valdemiro Santiago é outro desgarrado da Universal. Depois de ser
considerado um virtual sucessor de Edir Macedo, brigou com ele e saiu
para fundar em 1998 a sua seita, a Igreja Mundial do Poder de Deus.
Começou com 16 membros e hoje o apóstolo Valdemiro chefia mais de dois
mil templos, alguns na África e em Portugal, e um jornal mensal,
Fé Mundial,
com tiragem de 500 mil exemplares — além de um maçante trololó diário
de 22 horas na Rede 21, uma subsidiária da Rede Bandeirantes, que
administra as duas horas restantes.
Sua marca registrada é um chapéu de boiadeiro, o que reforça sua imagem de astro sertanejo, que costuma ganhar espaço até no
Jornal Nacional,
da Globo, uma devota do divisionismo que Valdemiro poderia provocar nas
legiões de seu arqui-inimigo Edir Macedo. Quando enfrenta problemas de
caixa, Valdemiro confia no santo gogó. Em 2010, chorou diante das
câmeras de TV ao convocar 150 mil fiéis para ofertarem R$ 153, o número
de peixes de um alegado milagre de Cristo. Faturou cerca de R$ 23
milhões.
Empolgado, o bispo sertanejo imaginou outra forma esperta de
arrecadar dinheiro fácil, mas desta vez sem choro. Criou a campanha do
“Martelinho da Justiça”, um pequeno, baratinho malho de madeira capaz de
quebrar mandingas, maus-olhados e “as pedras que atravessam os seus
caminhos”. A clava fajuta de Valdemiro, que despertaria a inveja do
grande Thor, devia ser canonizada como a mais cara do mundo: cada oferta
pelo martelinho tinha o mínimo de R$ 1 mil e Valdemiro esperava que 10
mil de seus seguidores o abençoassem com a compra do mimo, o que
rechearia seu chapelão com R$ 10 milhões.
No reclame da Igreja Mundial na TV, o pastor de português trôpego,
voz rouca, terno e gravata mostrava a certeza das favas divinas e muito
bem calculadas: “Ainda hoje ou amanhã, na primeira hora, você vai até a
agência bancária e faz esta ‘ofertinha’ de R$ 1 mil. Depois, mandaremos o
martelinho pelo correio”. Para esse milagre acontecer, bastava ao
crente fazer o depósito nas contas indicadas na tela e disponíveis no
Banco do Brasil, Bradesco ou Caixa Econômica Federal. “De preferência no
BB, como o nosso apóstolo tem nos orientado”, aconselhava o pastor, com
ar compungido.
A atrevida igreja de Valdemiro já vendeu garrafinhas pet de 400 ml
com ‘água ungida’, entregues por ‘ofertas’ de R$ 100, R$ 200 ou até R$
1.000, prometendo resultados espantosos: “Uma única gota dessa água será
o suficiente para mudar a história de sua vida, para lhe abençoar de
uma forma poderosa”, jurava o santo homem, escoltado por outros oito
pastores calados e sisudos, todos de gravata e terno escuro. Se usassem
óculos pretos iria parecer uma paródia do CQC, sem a divina graça do
programa humorístico da Band que sucede o show religioso do pastor R.R.
Soares nas noites da segunda-feira.
O bizarro
merchandising da Mundial tem produzido bons
resultados, pelo menos para as finanças da igreja de Valdemiro. No
primeiro dia de 2012 ele inaugurou em Guarulhos (SP) a ‘Cidade Mundial’,
um megatemplo de 240 mil metros quadrados e capacidade para acolher 150
mil fiéis da Igreja Mundial do Poder de Deus — mais de duas vezes a
lotação prevista do Itaquerão (68 mil lugares), o estádio que o
Corinthians está construindo para a Copa do Mundo de 2014. Para erigir o
templo, Valdemiro viu a igreja aumentar seus gastos mensais em R$ 30
milhões, prova de que o martelinho e a garrafinha são realmente
miraculosos.
O pastor Silas Malafaia, chefe supremo da AVEC, sigla da associação
que mantém a Igreja Vitória em Cristo, é a voz mais trovejante desse
abusado mercado da fé ancorado nos fundamentos pétreos da Teologia da
Prosperidade. Embora tenha os mesmos instrumentos de redenção econômica
de Edir Macedo, Malafaia é um inimigo mortal do dono da Universal.
Divergiram até na eleição presidencial de 2010: ele primeiro apoiou
Marina Silva, depois fulminou sua opção pelo plebiscito no debate sobre o
aborto (“cristão não tergiversa nesse tema”), e acabou fazendo campanha
por Serra, adversário de Dilma, apoiada justamente pelo rival bispo
Macedo. Malafaia é figura fácil no Congresso Nacional, em Brasília, onde
veste a armadura de sua santa cruzada contra a proposta de lei que
combate a homofobia: “O projeto [que garante a livre orientação sexual] é
a primeira porta para a pedofilia”, reza, com a fúria dos justos. Numa
entrevista a uma revista religiosa, crucificou como “idiotas” todos os
pastores que, ao contrário dele, não apostam suas fichas, martelinhos e
garrafinhas na Teologia da Prosperidade.
Ele não poupa a garganta e fala muito: quase todo santo dia, Malafaia
se esparrama por cinco horas de programas variados em redes nacionais
como CNT, Rede TV, Boas Novas e Bandeirantes e ocupa os sábados de
emissoras regionais em outros 15 Estados. Seu programa se espalha pelos
Estados Unidos e Canadá e, desde meados de 2010, Malafaia atinge 142
milhões de lares em 127 países da África, Ásia, Oriente e Médio e
Europa, com o apoio da americana Inspiration Network, que faz a dublagem
para o inglês.
Para tornar mais veraz sua pregação, às vezes importa dos Estados
Unidos especialistas nesta riqueza material. No ano passado, junto com o
pastor americano Mike Murdock, Malafaia lançou o projeto do “Clube de 1
Milhão de Almas”. Alma, sabem os televangelistas, custa caro. Ele
pretendia arrebanhar um milhão de crentes para sua grei e seus programas
de TV, mediante a ‘oferta’ (voluntária, claro) de R$ 1 mil — ou seja,
um martelinho de madeira, pelo generoso chapéu do bispo Valdemiro. Na
conta do lápis, uma bolada plena de R$ 1 bilhão, capaz de pagar mais do
que cinco Mega-Senas da Virada, que bateu em R$ 177 milhões no réveillon
de 2011. Os ofertantes ganhariam o livro
1001 chaves da sabedoria, do pastor Murdock, e um certificado do clube milionário, em todos os sentidos.
Para inspirar o seu rebanho, Malafaia teve a feliz ideia de colocar
um contador de acessos na página da igreja para que todos acompanhassem a
adesão em catadupa do milhão de almas. Algo deu errado, ou o martelinho
não funcionou. Lançado em abril do ano passado, o contador da igreja
Vitória em Cristo virou uma estátua de sal, como a mulher de Lot em
Gênesis (19,26) e estagnou num número pífio: miseráveis 58.875 almas era
a contagem de quinta-feira passada, 5 de janeiro. Um inferno de
faturamento que não chegou a R$ 60 milhões, muito distante do paraíso do
R$ 1 bilhão arquitetado pelo diabólico Malafaia. Faltam portanto ainda
941.125 almas para Malafaia inaugurar, sob as trombetas de Jericó, o seu
clube milionário. Haja martelinho!
O bravo Malafaia não desiste facilmente. Em 2009 ele lançou a campanha de uma
Bíblia
por módicos R$ 900, pouco menos que um martelinho. Era a tarifa da
Bíblia da Batalha Espiritual e Vitória Financeira, sacada genial de
outro gênio da prosperidade, o pastor americano Morris Cerullo. Desta
vez, a garrafinha deve ter funcionado, pois antes do final do ano ele
viajou à Flórida, nos Estados Unidos, e lá viu se materializar, em nome
da Vitória em Cristo, um jato executivo Cessna quase novo, modelo
Citation Excel, pela bagatela de 12 milhões — de dólares!
Se alguém tiver alguma restrição a
Bíblia, martelinho ou garrafinha, nem assim terá qualquer constrangimento para auxiliar o empreendimento celestial de Malafaia,
o bom pastor dá a boa notícia de que todos podem participar de sua
jornada, tornando-se seu ‘Parceiro Ministerial’, um programa de
fidelidade da Igreja que arrecada fundos para manter seus programas de
TV. A porta está aberta a “qualquer pessoa que receba de Deus a visão de
abençoar vidas, proclamando o Evangelho por meio das mensagens do
pastor Malafaia”, explica o dono do
site e da igreja.
Dependendo do tamanho da carteira, seu título de parceiro também cresce:
o ‘Especial’ paga R$ 15 mensais, o ‘Fiel’ doa R$ 30 e o ‘Gideão’ entra
na cota de sacrifício do martelinho: R$ 1 mil mensais, com direito a um
exemplar por mês da revista
Fiel, livros, bíblias e um cartão para 10% de descontos nos produtos da Editora Central Gospel comprados pelo
telemarketing, “desde que não esteja em promoção”.
Virar parceiro do pastor é fácil, pagar é muito mais. A organização
abençoada de Malafaia trabalha com o ganhoso instrumental financeiro de
uma grande loja de departamentos, como convém a este éden da
prosperidade. A igreja Vitória em Cristo opera, sem preconceitos, com
cartões Visa, Master, Diners, Amex ou Hipercard e tem contas abertas,
sem discriminação, com o Banco do Brasil, HSBC, Bradesco ou Itaú, além
de trabalhar com boletos bancários ou cheques nominais. Malafaia aceita
boletos antecipados para o ano todo, mas nenhuma contribuição abaixo de
R$ 15. Acima, pode.
Agora, esse mundo dourado de riquezas, promessas, ofertas, obras e
fartura vai ganhar outro e inesperado púlpito: um espaço de brilho,
luzes e discussões mundanas, terrenas, insinuantes, quase lascivas.
Começa na terça-feira (10/1) a 12º edição do
Big Brother Brasil, o
reality show
da Globo que arrebata o país por 12 semanas no seu jogo canalha de
perfídias, traições, intrigas e sensualidade explícitas, onde garotas
curvilíneas e garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e
carentes de neurônios, desfilam suas abobrinhas em diálogos patetas e
reflexões idiotas. O jornalista Eugênio Bucci, professor de Ética
Jornalística da ECA-USP e da ESPM, de São Paulo, tatuou o
BBB como “o mais deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica qualquer humilhação”.
Na TV, onde nada se cria e tudo se copia, a Record também tem sua versão
BBB,
A fazenda, com mais roupa e a mesma dose intragável de papo imbecil. A
personal trainer Joana, a vencedora da versão 4 d’
A fazenda,
que acabou em outubro passado, arrebatou R$ 2 milhões após encontrar
uma beterraba premiada, entre outros sofisticados desafios intelectuais.
Apesar dessa crônica indigência, mais de 130 mil jovens brasileiros se inscreveram para o
BBB 12,
ao longo de sete meses, filtrados em seletivas regionais em dez
capitais. É uma febre televisiva que pode parar até a maior cidade
brasileira, São Paulo, onde chega a bater em 40% do Ibope, o que
significa quase dez milhões de telespectadores, metade da população da
Grande SP.
A vencedora do
BBB de 2011, a modelo paulista Maria Helena,
27 anos, de São Bernardo do Campo, faturou um cheque de R$ 1,5 milhão
ganhando o voto por telefone de 51 milhões de pessoas. Se fosse
candidata a presidente em 2010, Maria Helena, capa da edição de junho de
2011 da revista
Playboy, teria derrotado José Serra por mais de sete milhões de votos e perderia para Dilma Rousseff por menos de cinco milhões.
Boninho, o diretor do
BBB, apimentou a receita em 2012, para
horror do pastor Malafaia, infiltrando quatro homossexuais entre os
doze sarados concorrentes. “Três dos quatro gays são mulheres”, adiantou
o lúbrico Boninho no seu tuíter. Ele não disse, mas o programa de 2012
terá também a atração extra de duas evangélicas, a assistente comercial
mineira Kelly, 28 anos, e a zootécnica baiana Jakeline, 22. O
empresário Danilo Leal, 45 anos, pai de Jakeline, acha que a filha vai
resistir bem ao paredão impiedoso do
BBB, apesar de evangélica:
“Ela não é recatada. Espero que Jakeline aproveite bem seus 15 minutos
de fama e faça o pé de meia”, reza o empresário, dando sua sanção
paternal para o que der e vier.
Não se sabe ainda o tamanho do fio-dental que as duas evangélicas vão
exibir na casa mais vigiada do Brasil, nem o salmo que irão recitar
debaixo do edredom, cercadas por tantas câmeras indiscretas. Não deixa
de ser simbólico que, cinco séculos após ser cravado nos portões da
igreja de Wittenberg, o credo rigorosamente puritano e austero fundado
pelo cisma de Luterano infiltre duas crentes assanhadas e iconoclastas
no cenário conspícuo do programa mais ímpio da maior rede brasileira de
TV aberta. A explicação, certamente, não está nas páginas lambidas da
Bíblia dos templos e igrejas desta terra supostamente laica, mas nas
cédulas louvadas do dinheiro ungido pela graça divina e pela licença dos
homens neste país tropical, que Jorge Ben resumiu como “abençoado por
Deus e bonito por natureza”.
A louvação ecumênica ao dinheiro pintado pela hipocrisia de todos os
credos esclarece, em parte, a progressiva invasão destes templos cada
vez mais eletrônicos, escancarados por vendilhões cada vez mais
acessíveis a espertalhões cada vez mais abusados no assalto à boa fé de
sempre dos desesperados.
O velho evangelista Kenyon, profeta dessa cínica doutrina da
prosperidade, poderia traduzir este Armagedom moral com o mantra
invertido da religião de resultado que inventou: o que eu possuo, não
confesso.