terça-feira, junho 14, 2011

S.O.S...ÍNDIOS


Foi a partir da interpretação do § 1º do artigo 24 do Decreto nº. 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850, que o insigne jurista João Mendes Júnior, em 1912, formulou a tese do indigenato. O ilustre mestre entendeu que o indigenato já estivesse sacramentado pelo antigo Alvará Régio de 1º de abril de 1680.

Com a elegância e cultura de sempre escreveu:

"O indigena, primariamente estabelecido, tem a sedum positio, que constitue o fundamento da posse, segundo conhecido texto do jurisconsulto Paulo (Dig., titul., de aq. vel. amitt. posses., L. 1), a que se referem SAVIGNY, MOLITOR, MAINZ e outros romanistas; mas, o indigena, além desse jus possessionis, tem o jus possidendi, que já lhe é reconhecido e preliminarmente legitimado, desde o Alvará de 1º de Abril de 1680, como direito congenito. Ao indigenato, é que melhor se aplica o texto do jurisconsulto Paulo: - quia naturaliter tenetur ab eo qui insistit.

Só estão sujeitas à legitimação as posses que se acham em poder de occupante (art. 3º da Lei de 18 de Setembro de 1850); ora, a occupação, como titulo de acquisição, só póde ter por objecto as cousas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas por seu antigo dono. A occupação é uma apprehensio rei nullis ou rei derelictae. (confiram-se os civilistas, com referencia ao Dig., tit. de acq. rerum domin., L. 3, e tit. de acq. vel. amitt. poss,, L. 1); ora, as terras dos indios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res nullius, nem como res derelictoe; por outra, não se concebe que os índios tivessem adquirido, por simples occupação, aquillo que lhes é congenito e primario, de sorte que, relativamente aos indios estabelecidos, não ha uma simples posse, ha um titulo immediato de dominio; não ha, portanto, posse a legitimar, ha dominio a reconhecer e direito originario e preliminarmente reservado.

O art. 24 do Decr. n. 1318 de 30 de Janeiro de 1854, explicando o pensamento da Lei, claramente define, no § 1º, que, em relação 'às posses que se acharem em poder de primeiro occupante', estão sujeitas à legitimação aquellas 'que não têm outro titulo senão a sua occupação'. Esse § 1º do art. 24 do cit. Decr. de 1854 reconhece, portanto, a existencia de primeiro occupante que tem titulo distincto da sua occupação. E qual póde ser esse primeiro occupante, com titulo distincto da sua occupação, senão o indigena, aquelle que tem por titulo o indegenato, isto é, a posse aborigene? O Decr. de 1854 repetiu desse modo o pensamento do Alv. de 1º de Abril de 1680: 'quer se entenda ser reservado o prejuízo e direito dos Indios, primarios e naturaes senhores das terras'.

Há, pois, outras reservas que não suppõem posses originarias ou congenitas: essas são as das terras devolutas, que destinam-se, na fôrma da Lei n. 601 de 18 de Setembro de 1850, art. 12, à colonisação, assim como à fundação de povoaçôes, abertura de estradas e quaesquer outras servidões publicas, assim como à construcção naval. A colonisação de indigenas, como já ficou explicado, suppõe, como qualquer outra colonisação, uma emigração para immigração; e o proprio regulamento n. 1318 de 30 de Janeiro de 1854, no art. 72, declara reservadas das terras devolutas, não só as terras destinadas à colonisação dos indigenas, como as terras dos aldeamentos onde existem hordas selvagenes. Em summa, quer da letra, quer do espirito da Lei de 1850, se verifica que essa Lei nem mesmo considera devolutas as terras possuidas por hordas selvagens estaveis: essas terras são tão particulares como as possuidas por occupação legitimavel, isto é, são originariamente reservadas da devolução, nos expressos termos do Alvará de 1º de abril de 1680, que as reserva até na concessão das sesmarias" (Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e politicos, João Mendes Junior, Typ. Hennies Irmãos, São Paulo, 1912, pp.58-60).

O excelso mestre afirmou que o primeiro ocupante, com título distinto da sua ocupação, era o índio. O contexto da época em que ele vivia, de amarga memória para as relações étnicas no Brasil, entre índios e não-índios, influenciou, sem dúvida, as suas reflexões. O início do século XX foi momento de dramáticas ocorrências. Primeiramente, no oeste paulista, por causa da construção das linhas férreas da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que, em diagonal, cortavam o planalto ocidental de São Paulo na direção de Mato Grosso. O Brasil precisava superar, urgentemente, o trauma da guerra com o Paraguai. Naquela época, por não contarmos com um caminho terrestre permanente para o Mato Grosso, quase o perdemos para as tropas paraguaias. Os índios Kaingang, seculares habitantes daquelas terras brasileiras, foram desumanamente massacrados para aquele desiderato ser atingido. A imprensa da época registrava com cores dantescas a violência reinante. Os índios, corajosamente, na defesa do seu território, chacinavam, em seus acampamentos, diariamente, equipes de trabalhadores das construtoras que iam estendendo as paralelas de aço em suas terras. Chegou-se a constituir tropas paramilitares chamadas "bugreiros" para proteger os acampamentos dos trabalhadores, as estações, os comboios ferroviários e comunidades de não-índios, que iam se formando ao longo das linhas. Um verdadeiro genocídio de ambos os lados! A estrada foi construída, os índios perderam seu território, e o Brasil superou o seu trauma, deixando profunda revolta nas almas dos intelectuais da época, que, distantes do sertão, ignoravam as agruras daquela marcha em direção às barrancas dos rios Paraná e Paraguai, buscando as nossas fronteiras ocidentais.

Na mesma época, no vale do rio Itajaí, em Santa Catarina, progredia a colonização alemã, deixando o litoral em direção ao planalto catarinense. Ao fazê-lo, os colonos se depararam com os índios Xokleng ou Botocudos e Kaingang, ocorrendo idênticos genocídios. A comunidade acadêmica e científica escandalizou-se com a atrocidade da proposta do diretor do Museu Paulista daquela época (de 1894 a 1915), o alemão naturalizado brasileiro, Hermann Friedrich Albrecht von Ihering, que aconselhava a organização de tropas, os famigerados "bugreiros", para exterminar índios que ameaçassem o progresso da colonização alemã no vale daquele rio. Esses insólitos acontecimentos doíam na alma do nosso grande jurista João Mendes Júnior, que tomou a defesa dos nossos índios, difundindo a doutrina do indigenato no Brasil.

O ilustre jurista propagou que o primeiro ocupante da terra era o índio, porque tinha por título o indigenato, isto é, a posse aborígene. Mas o § 1º do artigo 24 do Decreto nº. 1.318 de 30 de Janeiro de 1854, com certeza, estava se referindo também aos milhares de posseiros não-índios que invadiam as terras devolutas. Para os índios, a Lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850, reservou especificamente o artigo 12, e o decreto regulamentador reservou os artigos 72, 73, 74 e 75. Nem na lei nº. 601, nem no Decreto nº. 1.318, se encontra um parágrafo, uma frase, uma palavra que autorize alguém a pensar em "direitos originários". Essa expressão retirada do Alvará Régio de 1680 é que deu origem àquela doutrina, que não se sustenta em nenhum outro texto. A expressão "direitos originários" realmente não foi utilizada nos textos legais anteriores.

Particularmente sobre os índios, a Lei nº. 601, em seu artigo 12, estabelecia:

"Art. 12 – O Govêrno reservará das terras devolutas, as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos índígenas; 2º, para a fundação de povoamento, abertura de estradas e quaisquer servidões e assento de estabelecimentos públicos; 3º, para a construção naval."

E o Decreto nº. 1.318, no Capítulo VI, com o título "Das Terras Reservadas", trata especificamente dos indígenas pertencentes a hordas selvagens nos artigos 72, 73, 74 e 75.

Vejamos:

"Art. 72 – Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas nos Districtos onde existirem hordas selvagens.

Art. 73 – Os inspetores e Agrimensores, tendo notícia da existência de tais hordas nas terras devolutas que tiverem de medir, procurarão instruir-se do seu gênio e índole, do número provável de almas que elas contém, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento, de tudo informarão ao Diretor Geral das Ter

ras Públicas por intermédio dos Delegados indicando o lugar o mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão da terra para isso necessária.

Art. 74 – À vista de tais informações, o Diretor Geral proporá ao Govêrno Imperial a reserva das terras necessárias para o aldeamento, e tôdas as providências que êste se obtenha.

Art. 75 – As terras reservadas para a colonização de índígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usufruto; e não poderão ser alienadas enquanto o Govêrno Imperial por ato especial não as conceder o pleno gôzo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização."

Essa era toda a legislação relativa aos índios no Império: o Regulamento das Missões (Decreto nº. 426), a Lei de Terras, nº. 601, e o Decreto nº. 1.318 que a regulamentava.

A Constituição imperial de 1824, primeira Constituição brasileira, simplesmente ignorou o índio, não havendo nela nenhum título, capítulo ou artigo sobre o primitivo habitante da terra.

A Lei Maior do Império não dedicou, lastimavelmente, nenhuma atenção aos índios. Não se encontra, em seus dispositivos constitucionais, nada que possa significar preocupação com aquilo que está na bela e generosa doutrina do indigenato. Ora, não seria um parágrafo de um artigo daquele Decreto (1.318, de 30 de Janeiro de 1854) que iria ser maior do que a própria lei que procurava regulamentar: não havia aquela preocupação, nem a força jurídica para gerar direitos que a Lei Maior não abrigava. A Lei de Terras de 1850, por sua vez, era lei infraconstitucional e tinha um sentido meramente administrativo, procurando, apenas, orientar a nação, tentando ajudá-la a desvencilhar-se do emaranhado fundiário a que fora conduzida pelo regime anterior das sesmarias, advindo das Ordenações Filipinas.

Ilegitimidade dos esbulhos expropriatórios praticados pelo governo em nome da tutela indígena. Interpretação errônea do direito indígena à terra no passado e na atualidade. Aplicação do princípio do indigenato a partir da Constituição de 1988. Abusos da FUNAI, do Ministério Público Federal e do Ministério da Justiça

Não são legítimos os verdadeiros esbulhos expropriatórios do Governo, em nome da tutela indígena, contra produtores rurais de diversas áreas do território nacional, tendo como base a exegese equivocada do direito indígena brasileiro, durante o Império, a 1ª República e, agora, a partir de interpretações cavilosas da Constituição Federal de 1988.

Em vários quadrantes do país, a doutrina do indigenato, de João Mendes Júnior, vem gerando confusões e interpretações açodadas, por parte da FUNAI, do Ministério Público Federal e do Ministério da Justiça, em verdadeira afronta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já consubstanciada na Súmula nº. 650.

Rememoremos que, por ocasião da Constituinte 1987-1988, a pretensão de alguns extremados indigenistas era de que o indigenato, inspirado na generosa doutrina de João Mendes Júnior, pudesse retornar, sem limites no tempo, e dar ao sentido de "direitos originários", constantes do texto constitucional, uma significação dogmática e absoluta. Porém, foram derrotados naquela Constituinte, pois o indigenato contemplado no texto constitucional de 1988, em termos de "direitos originários", tem um significado bem diferente daquele de "posse imemorial", sem limites no tempo, até porque a norma constitucional não tem, aqui, caráter retroativo, só tendo sentido a partir da data da promulgação, 5.10.1988.

É preciso que se esclareça que a doutrina do indigenato não teve eficácia jurídica em nossos textos constitucionais, senão a partir de 5 de outubro de 1988, porque foi a primeira Constituição brasileira a dar proteção aos "direitos originários", conforme se depreende do caput do art. 231, verbis:

"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus DIREITOS assim como seus bens."

Serra do Sol

"Sem nossas terras é impossível resgatar nossas raízes; A todos os países denunciamos o Brasil que nos nega a existência com pesada indiferença"

Na verdade o que mais me revolta é o cúmplice descaso das autoridades.

Os eleitos para protege-los, os destroem.

FYI. Meus sinceros agradecimentos aos leitores e aos amigos de longe pela participação,

Estados Unidos, Dinamarca, Portugal, Alemanha, Japão, Cingapura, Venezuela, Reino Unido, Indonésia e Índia.

Obrigado!

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